Autor: Gerardo Figueiredo Junior – advogado, sócio do Zeigler Advogados responsável pela área de Food Law.
Em março de 2025, o Governo anunciou novas medidas para enfrentar a inflação persistente no setor de alimentos, incluindo a isenção de imposto de importação para itens como arroz, feijão e carne bovina, conforme divulgado pelo Ministério da Fazenda. Apesar disso, o IPCA-15 de março registrou uma alta de 0,36% nos preços dos alimentos e bebidas, com destaque para os aumentos do tomate (17,79%), da batata-inglesa (8,81%) e do leite longa vida (3,01%), segundo dados do IBGE.
Alguns especialistas apostam que as medidas não trarão redução significativa de preços ou que, caso aconteça, será bastante discreta e limitada a alguns alimentos. Houve, no entanto, consenso sobre outras providências que o Governo poderia ter adotado e que ficaram de fora, como a desoneração de insumos, entre outras.
Antes do anúncio, falava-se em “flexibilização sanitária”, o que, na prática, poderia significar fazer vistas grossas a questões como o prazo de validade de alguns alimentos, tornando-os aptos ao consumo mesmo após a data limite impressa na embalagem. Esse tema não foi oficialmente colocado em pauta, mas é certo que permanece em discussão, embora não necessariamente pelos motivos mais adequados.
E, nesse ponto, é bem possível que a polarização que aflige o Brasil cause mais uma vítima, pois a revisão do critério para determinar como deve ser a validade de alimentos corre o risco de ser associada a uma política de governo sob a égide de “entregar alimentos vencidos à população”. A comunicação oficial não colabora muito para esclarecer os fatos e o resultado é, no mínimo, a dúvida na cabeça dos consumidores. Existem várias crises em curso no País, mas a de credibilidade é uma das mais graves, tornando uma necessária revisão legislativa uma medida meramente paliativa, ligada a questões econômicas ou impregnadas de viés político e ideológico.
Prazo de validade deveria ser um tema tratado com muito cuidado, com o suporte de dados técnico-científicos acreditáveis, valendo-se de consultas públicas e do necessário envolvimento de todas as partes interessadas, e não um assunto atirado à mídia e à opinião pública de qualquer forma, sem embasamento e sem se saber ao certo qual o sentido de uma mudança desse porte.
Infelizmente, o setor de alimentos é um dos mais afetados pelas guerras de versões, que afastam cada vez mais a ciência pura do centro das atenções.
A validade de produtos não é – e jamais deveria ser – objeto de guerra política, pois se trata de um assunto que merece ser visto com bastante cuidado. Afinal, estamos falando sobre segurança alimentar e não buscando culpados pela alta no preço do café e de outros alimentos.
O Brasil é pródigo em criar mitos, e muitos deles se tornam verdadeiros mantras repetidos à exaustão, a depender dos interesses envolvidos naquele momento.
Há muito se discute a necessidade de rever o modelo de comercialização de alimentos no Brasil, buscando um caminho próprio ou se espelhando na forma como outros países lidam com a questão.
Certamente, a grande maioria dos brasileiros não se lembra do mundo sem uma data de validade impressa em praticamente todos os produtos comercializados, mas houve um tempo no qual o que ditava a qualidade do alimento era, muitas vezes, a sensibilidade do consumidor por meio da visão, do olfato e da própria experiência na hora de comprar ou consumir seja lá o que fosse.
Tudo isso mudou quando o Brasil decidiu importar a ideia de incluir em cada item uma data de validade baseada nas informações do próprio fabricante, o que dependia de testes capazes de demonstrar a partir de quando um alimento começava a perder suas próprias características, tornando-se impróprio ou inadequado para o consumo. Desde o final dos anos 1970, convivemos com a obrigatória inclusão do prazo de validade nos rótulos de alimentos¹.
A princípio, parecia apenas mais uma obrigação imposta a fabricantes e comerciantes, que passariam a investir em análises e maquinário que pudessem garantir que os produtos jamais fossem expostos à venda fora do prazo limite estabelecido.
Quantas vezes não ouvimos esquetes de comédia questionando o que acontecia em um pote de iogurte entre a meia-noite e o primeiro minuto do dia seguinte ao fim da validade? Na dúvida, o brasileiro aprendeu a não consumir o que estivesse “vencido” e, muitas vezes, sequer o que estivesse próximo à data de vencimento.
Aproximadamente 36% dos alimentos descartados no varejo são perdidos por vencimento do prazo de validade², segundo dados fornecidos pela Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS), o que representa uma importante perda de produtos que poderiam estar nas geladeiras e mesas dos brasileiros caso fossem comercializados a tempo ou se a regulação permitisse uma sobrevida desses produtos nas prateleiras – o que, é claro, dependeria da palavra da ciência e de uma mudança na legislação.
Em tempos de agravamento da insegurança alimentar – e se não se trata apenas da fome, que fique bem claro –, causado sobretudo pelos reflexos da pandemia provocada pela Covid-19, nossas autoridades se viram obrigadas a tomar algumas medidas para tentar mitigar as perdas. Alguns produtos foram “isentados” do prazo de validade, voltando a valer a velha regra da experiência sensorial na hora da compra. Vegetais que antes dependiam do crivo do prazo de validade retornaram à condição de se submeter à avaliação do consumidor no momento da compra, o que provocou revolta em alguns, acostumados a ler as datas impressas até mesmo em berinjelas e laranjas e, a esta altura, desconfiados da própria capacidade de identificar se um produto está apto ou não a ser consumido.
Estaríamos voltando à idade da pedra?
Certamente, não. O Brasil pode se orgulhar de ter algumas das mais rigorosas autoridades mundiais em termos de segurança alimentar e relações de consumo, muitas vezes bem mais exigentes do que seus pares internacionais.
Pois bem, agora nos deparamos com o reaquecimento da discussão sobre a melhor forma de manter o consumidor seguro ao consumir alimentos. No entanto, os motivos para isso parecem não ser os ideais.
O modelo norte-americano conhecido como “best before”, ou seja, quando há uma sugestão de consumo antes de uma determinada data, mas não necessariamente o descarte compulsório, seria a melhor estratégia para combater a alta nos preços dos alimentos? Muitos economistas duvidam e, mesmo não sendo economista, tenho também minhas dúvidas a respeito da efetividade dessa medida para alcançar tal objetivo.
Em países da União Europeia, a discussão sobre o uso de datas como “best before” e “use by” voltou à tona no início de 2025, com propostas para flexibilizar a rotulagem de alimentos visando reduzir o desperdício. Segundo reportagem da BBC News (janeiro de 2025), países como a Alemanha e a Holanda começaram a revisar as normas de rotulagem de produtos como iogurtes e queijos para permitir que fossem comercializados por mais tempo, desde que mantidas as condições adequadas de conservação.
Rever o critério de validade máxima dos alimentos é parte do processo natural de aprimoramento das normas, sem que isso jamais possa comprometer a segurança do consumidor.
Há uma crise mundial muitas vezes ignorada e que consiste em uma enorme barreira que impede uma distribuição de alimentos de forma mais igualitária às populações. Não se trata de uma crítica a um ou outro modelo econômico; afinal, todos os países lidam com perdas e desperdício de alimentos em maior ou menor nível.
A incerteza a respeito dos números e as confusões em relação a conceitos básicos muitas vezes impedem a adoção de soluções concretas capazes de reduzir o que é perdido desde a lavoura até as geladeiras das famílias. Segundo o último relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), publicado em 2024, aproximadamente 1,05 bilhão de toneladas de alimentos são desperdiçadas a cada ano globalmente, o que corresponde a quase um quinto de toda a produção alimentar. No Brasil, esse número segue alto, com cerca de 26 milhões de toneladas de alimentos desperdiçados anualmente, conforme estudo do Instituto Akatu.
Quando se fala em fome e alimentação inadequada ou insuficiente, essa quantidade de alimentos poderia reduzir significativamente esse quadro de insegurança alimentar, principalmente no Brasil.
A validade dos produtos se tornou um desses desafios para as políticas públicas e iniciativas privadas no combate ao desperdício de alimentos, pois a perda de produtos ainda em condições de serem consumidos – o que certamente não se aplica a qualquer tipo de alimento – precisa ser considerada nessa matemática cruel.
O momento do País levou à retomada da discussão em torno de soluções que permitam a coexistência de um prazo de validade capaz de garantir a segurança da população e, ao mesmo tempo, que não contribua para as perdas e desperdício. Infelizmente, essa discussão volta à tona de forma atabalhoada e contaminada pelo debate político-ideológico.
Que nossos legisladores e autoridades tenham consciência disso e proporcionem um diálogo com representantes legítimos de todas as partes interessadas no tema e que, afinal, somos nós!