Allana Katiussya Silva Pereira
Engenheira florestal, mestra em Ciências Florestais e doutoranda em Recursos Florestais – Universidade de São Paulo (USP)
Gabriela Fontes Mayrinck Cupertino
Engenheira florestal e mestranda em Ciências Florestais – Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
João Gilberto Meza Ucella-Filho
Engenheiro florestal, mestre e doutorando em Ciências Florestais – Universidade Federal do Espírito Santo
Ananias Francisco Dias Júnior
Engenheiro florestal, doutor em Recursos Florestais e professor – UFES
Considerado um dos principais produtos renováveis da atualidade, o carvão vegetal vem ganhando cada vez mais espaço no setor energético e econômico do mundo. Dentre todos os países, o Brasil é o maior produtor e consumidor deste produto, apresentando um montante de produção que atingiu cerca de 838 mil toneladas no primeiro trimestre de 2021.
Os números são surpreendentes. Contudo, sua produção tem sido pauta em discursos ambientalistas em todo o mundo. Isso porque o processo acaba produzindo gases nocivos, que muitas vezes podem ser prejudiciais ao meio ambiente.
Sabe-se que nos processos de conversão da madeira em carvão vegetal, geralmente 2/3 da biomassa é perdida em forma de fumaça. Diante da necessidade de mitigação dos impactos causados durante o processo de sua fabricação, a comunidade acadêmica e cientifica tem unido forças para desenvolver estratégias que visam reverter a problemática ambiental.
E é dentro dessa perspectiva que podemos enxergar o produto tradicionalmente conhecido como líquido pirolenhoso, ácido pirolenhoso, vinagre de madeira, licor pirolenhoso, fumaça líquida ou bio-óleo.
Quem é ele
Obtido a partir da condensação dos gases da carbonização da biomassa, o líquido pirolenhoso é considerado um material residual de grande complexidade e potencialidade. Um dos componentes básicos e presente em maior concentração na fumaça condensada é a água, no estado de vapor. A maior parte dessa água pode ser condensada, juntamente com dezenas de componentes químicos, resultando num produto viscoso.
Estudos afirmam que o líquido pirolenhoso consiste em mais de 200 compostos químicos solúveis em água: é composto por 80% de água e 20% de compostos químicos orgânicos compreendendo ácidos orgânicos, alcano, fenólico, álcool e éster.
Diante disso, estima-se que apenas no primeiro trimestre de 2021, a produção de 838 mil toneladas de carvão vegetal gerou cerca de 558 milhões de litros de líquido pirolenhoso. O percentual de água e demais compostos presentes na fumaça condensada são influenciados pela composição química da biomassa original, pelo processo de conversão empregado e umidade.
Pirólise de madeira de eucalipto
De composição química complexa, o líquido pirolenhoso é caracterizado pela sua acidez, elevada viscosidade e propriedades corrosivas. Além disso, estudos afirmam que esse produto é quimicamente instável.
Contudo, mesmo diante dos desafios atrelados a sua composição, diversos estudos estão sendo desenvolvidos para avaliar possíveis aplicabilidades para esse material residual. Biocombustível, cosméticos, herbicida e fertilizante são algumas das potencialidades do líquido pirolenhoso.
Emprego
Sua conversão envolve diversos mecanismos químicos que possibilitam a maior viabilidade na sua aplicação. Dentre os diversos estudos empregados visando sua aplicabilidade e geração de novos produtos, alguns têm se destacado.
Com caráter inovador, a aplicação do líquido pirolenhoso como fertilizante e produto bioativo aplicado à indústria farmacêutica tem sido pautada como oportunidade potencial de agregar valor a esse produto.
Uso como fertilizante
Utilizado há séculos no Japão, a fabricação e utilização de líquido pirolenhoso como fertilizante é uma técnica antiga. No Brasil, sua aplicação na agricultura é recente, e vem se intensificando a cada dia devido ao fato da sua constituição poder ser manipulada em razão das condições térmicas da carbonização ou pela utilização de catalisadores.
Esse produto tem despertado interesse de diversas áreas, incluindo, além da agronômica e alimentos, a medicina e a farmácia. Na área agronômica, pesquisas clássicas da área já mostraram que o uso de líquido pirolenhoso, inclusive quando utilizado juntamente com finos de carvão, atua de forma positiva no solo e nas plantas, acarretando na redução do uso de agrotóxicos.
Durante o processo de carbonização da madeira deve haver a utilização de sistemas apropriados para a coleta dos gases condensáveis que formam o líquido pirolenhoso. Estudos têm sido realizados a fim de investigar o seu uso na agricultura e verificado significativa melhora nas propriedades físicas, químicas e biológicas do solo, favorecendo a absorção de nutrientes pelas culturas.
Além disso, os efeitos se estendem à regeneração físico-química e biológica do solo, controle de pragas e doenças e ao auxílio na germinação de sementes e crescimento radicular das plantas. Vários trabalhos apontam a sua eficiência como produto natural na agricultura, incluindo o efeito inseticida e no controle de microrganismos em diversas culturas, reduzindo o desenvolvimento de fungos fitopatogênicos, seja pelo vigor da planta e/ou pela indução da resistência sistêmica das plantas.
Porém, ainda são escassas as informações técnicas e científicas quanto aos critérios, normas e concentrações ideais a serem aplicadas a cada cultura. A recomendação genérica é que o líquido pirolenhoso não seja aplicado em sua forma bruta, devido à sua complexa composição química, sendo necessária a diluição em água e, na maioria das vezes, processos de decantação e/ou destilação e filtração.
Para a indústria farmacêutica
A complexidade química do líquido pirolenhoso, em especial a presença de compostos fenólicos, é o que lhe confere características bioativas que podem ser aplicadas no desenvolvimento de produtos fármacos visando subsidiar a indústria farmacêutica e, consequentemente, o setor público de saúde mundial.
O líquido pirolenhoso apresenta efeito antimicrobiano frente a microrganismos que agem diretamente na deterioração de alimentos e sob bactérias nocivas à saúde pública. Sua atividade antimicrobiana vem sendo cada vez mais estudada, principalmente englobando diferentes variáveis do processo de pirólise (temperatura final e taxa de aquecimento) sob espécies de fungos, bactérias e vírus.
Dessa forma, a depender do seu processo de fabricação, coleta e armazenamento, o líquido pirolenhoso pode apresentar uma diversidade de substâncias biologicamente ativas e de extrema importância, que podem fazer desse subproduto da carbonização um produto com valor agregado na indústria farmacêutica.
É comprovado cientificamente que este material possui a capacidade de atuar na parede celular de bactérias patogênicas gram-positivas e gram-negativas agindo como agente bactericida. Além disso, suas propriedades desintoxicantes também fazem do líquido pirolenhoso um importante agente no tratamento de micoses superficiais na pele.
Antioxidante
Além do potencial antimicrobiano, este produto também se caracteriza como antioxidante. Os estresses oxidativos são responsáveis por causar envelhecimento precoce, doenças cardiovasculares, Alzheimer, problemas neurológicos, câncer, entre outros. Desse modo, os antioxidantes agem como substâncias que atuam atrasando significativamente ou evitando a degradação de outras moléculas.
O líquido pirolenhoso possui a capacidade de se associar com radicais livres, reduzindo os processos oxidativos do corpo humano e evitando doenças venéreas.
O líquido pirolenhoso tem potencial de se tornar um grande aliado do setor farmacêutico ao servir de fonte de princípios ativos destinados à criação de novos medicamentos. Ademais, por ser gerado em grande quantidade anualmente e, por ser de origem natural, este produto pode possibilitar a redução dos custos de fabricação e comercialização de medicamentos, tornando-os mais acessíveis à população.