A floresta amazônica é como uma bomba gigante de umidade, liberando água pela transpiração das árvores, que é levada pela atmosfera e contribui para a formação de nuvens e precipitações em áreas distantes, os chamados ‘rios voadores’.
Ao devastar grandes áreas de floresta, os incêndios reduzem a evapotranspiração –processo pelo qual as árvores liberam vapor de água para a atmosfera – impactando diretamente a formação dos rios voadores.
Dados do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), já registram uma quantidade de focos de queimadas, no último trimestre de 2024, acima das médias históricas contabilizadas desde 1998.
Sem a umidade gerada pela floresta, há uma redução das chuvas, o que pode agravar secas em regiões distantes e criar um ciclo de degradação ambiental.
Vamos aos rios voadores
Os rios voadores nascem no oceano Atlântico, próximo à linha do Equador. José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), conta que eles são formados por massas de ar carregadas de vapor de água que vêm dessa região tropical.
O fenômeno dos rios voadores é alimentado pela umidade que vem da Amazônia, onde as árvores absorvem a água da chuva e a devolvem à atmosfera através da transpiração. Esse processo é chamado de evapotranspiração.
A umidade transportada pelo vento cria os rios voadores, que são “cursos de água atmosféricos” que podem viajar até 3 mil quilômetros pelo continente. Eles são fundamentais para a segurança hídrica do Brasil e de países vizinhos, como a Bolívia e o Paraguai.
“Se fosse possível converter todo esse vapor e umidade em água líquida, o volume seria de mais ou menos um rio Amazonas, ou um pouco mais. Por isso são chamados de ‘rios voadores’, porque estão na atmosfera, e também porque não nascem na Amazônia”, esclarece.
E continua: “Na verdade, os rios voadores fazem parte, sim, de um sistema climático. Eles são mais intensos durante a estação chuvosa, ou seja, o verão. Na estação úmida, eles transportam umidade, e durante a estação seca, transportam menos umidade, porque é a estação seca. Mas transportam outras coisas que podem estar simultâneas, como umidade, fumaça, aerossóis, qualquer coisa que esteja no ar, esses rios transportam. E é isso que está acontecendo agora”, pontua.
Marengo se refere ao fato da fumaça da Amazônia e do Pantanal estar chegando até o Uruguai e o norte da Argentina, transportada pelos rios voadores.
Realidade atual
Eduardo Landulfo, físico, pesquisador no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), explica que, nos últimos três anos, a incidência de queimadas e incêndios florestais vem aumentando consideravelmente e atingindo níveis nunca antes registrados.
Segundo ele, são vários os fatores que têm levado a estes patamares: “destacamos as mudanças climáticas, quer pela escassez de chuvas ou condições meteorológicas, que propiciam estas ocorrências: umidade baixa, ventos, bloqueios atmosféricos e temperaturas elevadas. Outros fatores são as ações antrópicas, ou seja, atear fogo a pastagens, materiais secos, como atividade de cultivo e, infelizmente, até ações criminosas”.
Ainda como agravante, há biomas ou regiões no país que são mais propícias para a ocorrência de queimadas, e como observado por vários satélites, o centro-oeste e a pare sul do sudeste e o norte do país são as mais atingidas, onde se encontram a Amazônia e o Cerrado, e áreas onde a agropecuária é mais atuante.
Landulfo esclarece que as queimadas injetam muito material na atmosfera e gases que causam elevação ainda maior da temperatura, por absorver muita radiação solar, inibir a ocorrência de chuvas, e assim, entrar num círculo vicioso catastrófico. “Indiretamente, vimos que o sul do país passou por uma calamidade, que está muito relacionada à escassez de chuva na Amazônia e o deslocamento de umidade de lá, o que amplificou o fenômeno natural La Niña, devido ao aquecimento do oceano índico e alteração da corrente de Humboldt na costa oeste da América do Sul”, pontua.
Crime contra a humanidade
Só no ano de 2024, conta Marcelo Alonso, o Brasil enfrentou um evento de chuvas e cheias na região sul que superou o evento ocorrido em 1941 e uma seca sem precedentes nas regiões central e norte, que culminaram em áreas degradadas pelas queimadas.
Lucas Ferrante, biólogo, ecólogo e pesquisador na Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM) relata que em sua maioria, os incêndios florestais que o Brasil tem registrado são de origem criminosa. “Biomas como o Pantanal e a Amazônia não pegam fogo naturalmente, entretanto, essa é uma prática comum entre grileiros de áreas que visam terras devolutas, principalmente para a expansão da pecuária”.
As áreas que têm concentrado os incêndios florestais estão no Bioma Pantanal e na Amazônia Ocidental, composta pelos estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima, principalmente ao longo das rodovias.
“Vimos essa região emitindo fumaça a ponto de ter os maiores índices globais de emissão de gases causadores do efeito estufa, o que tem um impacto enorme para a humanidade, já que retroalimenta a seca na região amazônica, por dois fatores. Primeiramente, porque gases causadores do efeito de estufa aceleram as mudanças climáticas, e a gente está falando de aceleração da seca na Amazônia. O segundo efeito que os aerossóis gerados pela fumaça e a fuligem causam é a agregação a partículas de chuva, impedindo que ela se forme, e induzindo a seca. A Amazônia está no seu limiar de desmatamento tolerado e nós podemos ter um colapso do bioma se esses índices de queimada e desmatamento continuarem”, adverte o especialista.
Os responsáveis
As causas dessa catástrofe, segundo Lucas Ferrante, são basicamente a falta de comando e controle na contenção da expansão da grilagem de terras sobre o Pantanal e a Amazônia, principalmente pela expansão da pecuária no eixo Rondônia, em Porto Velho, que está localizado no arco do desmatamento, até Manaus, na Amazônia Central.
“A rodovia BR319, inclusive, tem sido pautada para pavimentação, sem os devidos estudos ambientais e sem a consulta aos povos indígenas afetados. Então, o que nós vemos hoje, como foi descrito em um artigo na revista Nature, e pelo pesquisador do prêmio Nobel, Philip Fearnside, é que os sojicultores estão migrando do Mato Grosso para a região de Rondônia, adquirindo terras que antes eram de pecuaristas. Esses pecuaristas têm pegado montantes de dinheiro muito grandes por conta da venda de suas terras e migrado para o sul do Amazonas para adquirir áreas de grilagem na área da rodovia BR319. Inclusive, esses picos de fumaça que afetaram a capital do Amazonas, Manaus, têm sido gerados pela expansão da pecuária na região dessa rodovia”, detalha o pesquisador.
Ele enfatiza que, se a rodovia for pavimentada, faria migrar as anomalias climáticas hoje presentes no arco do desmatamento até a Amazônia Central. Isso afetaria as áreas de formação desses adensamentos de nuvens que são exportados pelos rios voadores.
O desmatamento prejudica a formação das células de chuva, responsáveis por 70% do abastecimento de água nas regiões sul e sudeste do Brasil. Essas áreas precisam ser preservadas de forma permanente, pois são essenciais para garantir não apenas o abastecimento de água para o consumo humano, mas também para sustentar a economia, a agricultura e a indústria do país.
Consequências ecológicas
Para Ferrante, as ocorrências de incêndios generalizados em diversas regiões do Brasil são resultado de ações orquestradas, cujo objetivo inicial é enfraquecer as áreas de proteção permanente (APPs) dentro das propriedades.
Essas áreas são fundamentais para proteger nascentes e corpos d’água. Além disso, biomas que anteriormente eram preservados estão sendo impactados pela abertura de novas estradas, o que facilita a migração da pecuária para essas regiões, que antes permaneciam protegidas.
Landulfo é enfático ao dizer que a supressão de umidade e ação de queimadas são uma combinação mortal à biodiversidade local, na Amazônia, e por onde esta poluição for espalhada. “Com a diminuição de áreas com chuvas e a alteração do seu padrão sazonal, há impactos diretos na produção agrícola, causando perdas ainda sendo estimadas, pois elas só aumentam”.
E acrescenta: “A alteração dos rios voadores terá consequências muito drásticas, ainda que em estudo”.
Ferrante complementa: “Se ocorrer o colapso dos ‘rios voadores’, áreas densamente povoadas, como a região abastecida pelo sistema Cantareira, que fornece água para São Paulo, deve perder 70% do seu reservatório com o colapso dos rios voadores, enfrentando uma grave escassez. Estamos falando, de fato, de uma crise sem precedentes, que afetaria não apenas o abastecimento humano, mas também a indústria e a agricultura. As consequências seriam enormes, incluindo prejuízos econômicos significativos para o país. Por isso, é crucial que protejamos esse ciclo hidrológico vital, não apenas para garantir o abastecimento de água para as pessoas, mas também para preservar a economia”, alerta.
Isso quer dizer que levar a Amazônia ao colapso pelo desmatamento não é uma forma de aumentar os ganhos desenvolver o país, mas sim um tiro no pé da nossa economia e, basicamente, afetar drasticamente o futuro do abastecimento humano nas regiões mais populosas.
Desdobramentos
Ferrante chama atenção para o plano de transição energética, ou seja, o Brasil perderá a capacidade de realizar uma transição energética devido ao colapso das plantações de cana-de-açúcar no sul e sudeste. “A produção de alimentos também deve ser comprometida, como as lavouras de café. Hoje já vemos algumas regiões sendo afetadas tanto pela seca como pelo aumento da temperatura. A flor do café aborta a partir dos 27ºC, então, a crise climática é extremamente preocupante. Nós estamos falando de o país estagnar economicamente e entrar numa crise perpétua se nós perdermos esse serviço ecossistêmico fundamental”, ressalta.
A situação mostra um desequilíbrio ecológico em andamento, e especialistas se perguntam se haverá retorno ao ponto original. “A expectativa é que sim, mas como estes efeitos há muito previstos ocorreram com antecedência de 10 anos, segundo os modelos climáticos preditivos, a situação ligou um alerta vermelho”, responde Landulfo.
As tecnologias atuais permitem bem ver os danos causados, como satélites e sensores de gases e partículas em terra. O próximo passo são sistemas de alerta para prevenção do fenômeno e um processo de reeducação nacional intensivo.
Ações imediatas
O pesquisador do Cemaden, José Marengo, é taxativo ao dizer que um agravante do Brasil é não investir em prevenção ou monitoramento. “Por exemplo, o que está sendo feito agora é combater os incêndios, mas isso é depois do desastre. O ideal seria estar preparado antes dos incêndios começarem. Então, precisamos ter as primeiras políticas de ‘fogo zero’, porque este é um fator ecológico. No caso do Cerrado, por exemplo, se houver fogo causado por raios, a vegetação depois cresce mais forte, mais robusta. Mas no caso da Amazônia, quando há uma seca, qualquer fogo que um pequeno agricultor ateie, com essa situação de seca, sairá do controle e se propagará, inclusive dentro de áreas protegidas, como parques nacionais”, alerta.
Para o professor Marcelo Alonso, as ações de mitigação, precaução e resiliência são urgentes e incipientes no país. “Deve-se pensar em ações decentralizadas em cada estado e município, capitaneadas ou não pela união, mas que possam ser capilarizadas em todos os níveis sociais, principalmente aos mais vulneráveis aos desastres climáticos”.
O Brasil possui uma ótima plataforma de focos de fogo detectados por satélite, mantida pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, mas ainda carece de um monitoramento de incêndios na escala mais local.
Torna-se também urgente aproximar os diferentes setores da sociedade numa ação comum de monitoramento e planejamento.
O Brasil se encontra em uma encruzilhada que força harmonizar o crescimento econômico com a sustentabilidade. “Um ganho econômico rápido é sempre atraente, mas sem continuidade está fadado à falência, em todos os sentidos”, alerta Eduardo Landulfo.