Aproveitar a sinergia entre plantas e animais nativos de uma região para resguardar a biodiversidade, reduzir e mitigar os impactos ambientais gerados pela atividade agropecuária, e garantir um cultivo sustentável e regenerador: esse é o objetivo dos sistemas agroflorestais (SAF), também conhecidos como agroflorestas. Esse modelo de desenvolvimento alia a recuperação de áreas degradadas com a produção de alimentos, por meio de plantações e da pecuária, ao se espelhar nos ecossistemas naturais e adotar boas práticas de manejo, como a rotação de culturas, o uso de adubos verdes e o aumento da cobertura arbórea. Aumentando a qualidade do solo e reduzindo a necessidade do uso de produtos químicos, o modelo eleva até mesmo a qualidade dos alimentos produzidos.
“Uma das grandes vantagens das agroflorestas é a possibilidade de um maior equilíbrio entre os interesses de mercado e a preservação do meio ambiente”, aponta Marcos Dá-ré, diretor do Centro de Economia Verde da Fundação CERTI. “Nestes sistemas, é possível produzir alimentos e outros insumos, como madeira, de uma forma que não acarrete o esgotamento dos biomas. Isso é essencial para suprir a possibilidade de cultivo a longo prazo e a demanda mundial por alimentos.”
Numa agrofloresta, a ideia é combinar espécies florestais perenes com cultivos sazonais e a criação limitada de animais. É fundamental que a implementação de uma agrofloresta leve em conta, primeiramente, a região em que o sistema se encontra: é preciso analisar as espécies nativas, o que se costuma cultivar ali, o tipo de solo, os animais, condições como temperatura e precipitação. Conhecer as pragas e doenças mais comuns na região também é essencial. A partir dessa análise, é feito um planejamento de quais cultivos serão realizados ali, com base nas particularidades de cada espécie: necessidade de luz solar ou sombra, possibilidade de crescimento em solo menos fértil, umidade, etc.
“Num sistema agroflorestal, fazemos combinações de espécies que se sucedem ao longo do tempo e geram uma estrutura parecida com uma floresta nativa”, resume Valmir Gabriel Ortega, fundador e CEO da Belterra, empresa que implanta sistemas agroflorestais em terras degradadas. “Combinamos espécies de ciclo curto, como mandioca, banana, milho, feijão, com espécies frutíferas ou florestais perenes, de porte médio, aquelas que chamamos de estrato intermediário da floresta: no caso da Belterra estamos falando de cacau, cupuaçu, açaí; espécies que vão gerar receita para o produtor por 40, 50 anos. E há também o estrato superior da floresta, que são as árvores madeireiras mais altas, que vão gerar receita a partir do oitavo, nono ano, geralmente a partir de frutos, sementes e óleos: no caso da Amazônia, são espécies como andiroba, copaíba, cumaru.”
“A agrofloresta é uma forma de traduzir o que a floresta nos ensina – em termos da sucessão de crescimento natural das diferentes espécies – para um sistema produtivo”, conclui Valmir. “É uma área produtiva que também gera os benefícios ambientais que a floresta tem, de preservação do solo, de estoque de carbono, de conservação de água.”
Conscientizar o produtor e mostrar a preservação como possível e rentável
Segundo o fundador e CEO Valmir Gabriel Ortega, a Belterra atua em áreas degradadas não só do ponto de vista ambiental, mas também econômico – ou seja, áreas de baixa produtividade. “Queremos recuperar e recompor o solo, mas também aumentar o potencial de rentabilidade para o produtor. Trabalhamos em parceria com produtores rurais, em contratos de longo prazo, de no mínimo dez anos”, ele explica. “Também viemos trazendo para o negócio novos investidores e novos parceiros estratégicos, como empresas compradoras de cacau, mandioca, banana. Queremos engajar o produtor, mostrando os benefícios do sistema agroflorestal e implantando esse sistema junto a ele, mas também garantir o escoamento dos produtos e a rentabilidade do negócio.”
Estruturada no final de 2019 e formalizada em 2020, a Belterra nasceu operando em quatro estados brasileiros (Pará, Rondônia, Bahia e Minas Gerais), e, em 2023, expandiu também para o Mato Grosso. A empresa já implantou dois mil hectares de agroflorestas, e tem mais oito mil hectares já contratados até 2025.
Outro exemplo de empresa que contribui na recuperação de áreas degradadas usando boas práticas agropecuárias – que conciliam produção responsável, manejo sustentável dos recursos naturais e restauração ecológica – é a RestaurAgro: fundada no Mato Grosso, a companhia presta consultoria para agricultores que descumpriram regras ambientais (desmatando regiões de floresta, poluindo cursos de água ou não manejando os resíduos adequadamente, por exemplo) e foram embargados pelos órgãos de fiscalização. Um dos objetivos da consultoria é explicar como os agricultores podem regularizar sua situação e fazer um uso adequado do solo. A regularização é essencial para que o produtor possa resolver suas pendências e voltar a ter acesso a crédito, por exemplo; e também garante que, a longo prazo, suas terras permaneçam produtivas e beneficiem o meio ambiente.
A RestaurAgro foi fundada por Thiago Farias Nogueira, nascido em uma família de agricultores familiares no interior do estado de Rondônia. Quando o pai de Thiago começou uma carreira na indústria madeireira, ele pôde conhecer a realidade do setor – inclusive suas irregularidades. Quando se formou engenheiro florestal no Mato Grosso, Thiago passou a trabalhar em uma startup voltada para a pecuária sustentável, e entrou em contato com os desafios dos produtores – em um contexto de forte conflito entre questões ambientais e o setor produtivo. “Pelo fato de também ser filho da terra, de entender a linguagem deles e saber das suas dores e da sua luta, eu tive menos dificuldade ao me comunicar com esses produtores do que outros profissionais, vindos de outros contextos, eventualmente teriam”, Thiago relata. “Houve uma identificação.”
A vontade de empreender surgiu depois que Thiago terminou seu mestrado. Diante de sua facilidade para compreender a legislação ambiental e se comunicar com os produtores, ele identificou uma oportunidade de fazê-los enxergar a importância de conservar seu maior patrimônio: a terra. “Tão importante quanto termos punições para quem degrada o meio ambiente, é entender o que levou cada produtor a fazer isso”, ele argumenta. “Em pequenas propriedades, por exemplo, muitas vezes as irregularidades acontecem por necessidade financeira, pois, no modelo atual, muitas áreas têm mais valor sem floresta: ou seja, em muitos casos, desmatar é uma atividade rentável. A ideia é conscientizar os produtores sobre a importância da preservação e da conformidade com a legislação ambiental para incluí-los de volta na cadeia de forma regularizada e sustentável.”
Criada em 2020, a RestaurAgro atua hoje como consultoria e assessoria ambiental, principalmente em questões envolvendo regularização de passivos ambientais e áreas embargadas. Dessa forma, a empresa consegue promover o desenvolvimento sustentável, mantendo a floresta em pé e gerando benefícios econômicos para as comunidades.
Programa Sinergia
No ano passado, tanto a RestaurAgro quanto a Belterra participaram do Programa Sinergia, da Plataforma Jornada Amazônia, projeto realizado e coordenado pela Fundação CERTI e pelo Instituto CERTI Amazônia que busca apoiar a criação de um pipeline de negócios inovadores para impulsionar o empreendedorismo, estabelecer e qualificar conexões com o mercado, e fortalecer o ecossistema de inovação e impacto positivo em toda a região da Amazônia legal. O projeto tem coparticipação e investimentos de Bradesco, Fundo Vale, Itaú Unibanco e Santander.
Parte da Plataforma, o Sinergia é um programa gratuito que tem o objetivo de aumentar a competitividade e a performance dos negócios inovadores com operação na Amazônia, ou com atuação na região; e também alavancar negócios ao promover conexões relevantes com o mercado, investidores, dinamizadores e outras organizações. Durante as mentorias, por exemplo, a RestaurAgro desenvolveu um novo modelo de negócio para facilitar o contato entre investidores e agricultores/pecuaristas que estejam em conformidade com a legislação ambiental.
Segundo Marcos Dá-ré, da Fundação CERTI, organizações que oferecem tecnologias e soluções para restauração da floresta e a implementação de agroflorestas têm uma conexão direta com o conceito de bioeconomia, essencial para que uma companhia seja selecionada para os programas da Plataforma Jornada Amazônia: “Essas empresas se propõem a alterar a forma de produção atual, criando alternativas sustentáveis para ajudar na conservação de plantas, animais e biomas, além de gerar valor com base em cadeias mais diversas e em bioprodutos”, explica. “Outro ponto de convergência é a questão social. Isso porque a inserção das comunidades locais e de povos originários – bem como de seus conhecimentos, técnicas e tecnologias ancestrais – nas cadeias produtivas é imprescindível para alcançar os objetivos ambientais e também promover a inserção socioeconômica dessas comunidades.”